Em seu texto sobre a "
mimesis tecnológica", o José Bragança
de Miranda faz uma pergunta, na página 210, que me parece sintomática:
"Será que para a abertura do 'novo' basta o aumento das possibilidades
combinatórias do programa?" A questão dele gira em torno da crítica da
interatividade como "
mimesis tecnológica", ou seja, como um
arquivo de possibilidades "pré-computadas", do qual os operadores não
conseguiriam escapar, na medida em que tudo estaria de antemão computado pelos
programas (quando não como conteúdos, pré-definidos no limite das
possibilidades "técnicas" do aparelho). E então ele usa, na mesma
página, os exemplos de dois contos do Borges, pra ilustrar duas consequências
que são basicamente a mesma: o conto do mapa (para designar a ideia de que a
experiência não-digital estaria sendo substituída pela experiência digital, na
qual "tudo permanece") e o conto do jardim das veredas que se
bifurcam (para designar, como alternativa à "permanência", um quadro
de "mera confusão" - que, no contexto, tem a ver com algo que ele
chama de "'incompetência' ou 'mau uso' do operador"). Em outras
palavras, a "experiência digital" acaba sendo, no 'mau uso', ou
repetição ou embaralhamento aleatório de combinações que já existiriam
"agendadas" num rol de possibilidades técnicas inultrapassáveis.
Gostaria de me colocar diante dessas ideias, antes de situar o clipe do Bob
Dylan no contexto.
Me parece que essa 'crítica do digital' que o autor faz tem muita semelhança
com todas as críticas que apareceram no século XX aos supostos funcionamentos
repetitivos da linguagem. "Discurso", "significado",
"sentido" etc, todas essas instâncias foram questionadas como sinais
de repetição e continuidade, daí resultando a percepção dos que aderem
reiteradamente como "alienados", "massa de manobra" etc.
Acho válido partir da distinção entre “analógico” e “digital”, pra pensar isso.
Analógico é “aquilo que pode assumir
valores contínuos”. Analogia significa “um ponto de semelhança entre coisas
diferentes”. Já o
digital é “a
representação de valores ou quantidades variáveis, por meio de conjuntos
finitos de algarismos”. Na linguagem, uma metáfora “legível” é analógica,
enquanto que o entendimento do alfabeto (conjunto finito) como um “limite
técnico” para a produção de palavras, que podem assumir formas variáveis sem
entretanto escaparem desse limite, pode ser um exemplo de lógica digital. No
final das contas, acho que os dois se parecem bastante: os dois são exemplos de
diferenças que se fundam na mesma base. A diferença talvez esteja apenas no
fato de que, na lógica digital, a base é “maior” (o conjunto prévio de
possibilidades é maior, quantitativamente falando) – é uma coisa sobre a qual
eu ainda não tinha pensado, então posso estar escrevendo uma enorme besteira:
mas vou seguir a pista, pra ver aonde vai dar.
O que parece é que as duas palavras são limitadas pra situar a experiência
que temos diante de (ou em consonância com) tudo o que há. Muitos teóricos da
linguagem sempre consideraram o mundo como um grande texto, o que acaba, em
certos casos, levando a uma espécie de idolatria da linguagem, que impede que
se considere a rede mais ampla de conexões que forma a realidade. E isso serve
igualmente para a questão da tecnologia (e, com efeito, a da interatividade):
na tese do Bragança, senti um excesso de importância dado pelo autor para o
suporte técnico, quando na verdade há uma infinidade de conexões possíveis em
jogo, que são “compostas” e não apenas o 1:1 que ele sugere, trazendo o conto
do Borges (o do mapa).
Acho que o Freud já tinha sacado isso com a questão das “associações
livres”. Ele dizia que o que move o inconsciente são essas “associações livres”
e não apenas o aparato redutor da ideologia e da cultura. Inegavelmente a
aderência é muito frequente, mas não por uma espécie de “essência” da coisa
toda, e sim porque as formações mais poderosas atuam para repetir certos
conteúdos com mais frequência. Existe uma tendência (que é diferente de
essência) nas pessoas de aderir, por uma série de motivos, tipo sobrevivência,
narcisismo primário, desejo de reconhecimento etc. Mas nada disso é da ordem da
“essência”, pois existe um componente ali que é da ordem da escolha. Preguiça é
também uma escolha. E aí entra a questão do Freud: na mente humana, as coisas
não funcionam como no dicionário, que repete conexões fixas e retesadas entre
as palavras e as coisas; na mente, o sentido flutua e flerta em conexões que
nada têm de convencional. Eu posso perfeitamente olhar para uma fruta e lembrar
do rosto de uma atriz de um filme que eu vi há dez anos – e não do nome
dicionarizado da dita fruta. No geral, as pressões da cultura são potentes (o
Magno certa vez chamou a cultura de “culstura” – porque força as amarras, tipo
“livro é texto”, “livro é texto”, “livro é texto” (quando na verdade livro pode
ser perfeitamente “som” ou “cheiro”, basta que a mente assim o queira ou
faça)). De qualquer forma, isso não apaga o fato de que a mente não funciona
assim.
Nesse sentido, me parece que a mente não é nem “analógica” (porque não se
resume a produzir metáforas ou valores contínuos) e tampouco “digital” (porque
não se limita a um conjunto finito – e prévio – de algarismos, que orientariam
toda a produção que dali decorre). Arriscaria dizer que a mente humana é um
imenso e incomensurável “jardim de veredas que se bifurcam”, como sugere o
Borges. Ou, pra ser mais contemporâneo, um “jardim de redes que se
trans-furcam”. Aliás, o Borges, que era
bastante inteligente e irônico, diz, no início do conto, que se trata de uma
declaração assinada por outra pessoa, e que – detalhe fundamental – faltam ao
texto as duas páginas iniciais. Podemos exercitar a associação livre da
seguinte forma: é como dizer que não há o tal “programa” prévio, que define as
combinatórias de antemão. Há, sim, uma tendência, a tendência de que certas
conexões se cristalizem com mais força, diante das pressões da cul[s]tura. Por
isso inclusive o Borges escreve no conto: “Em todas as ficções, cada vez que um
homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as demais”
(p. 89). Entretanto, na frase seguinte, ele mostra que entendeu basicamente a
mesma coisa que o Freud: “na [ficção] do quase inextricável T’sui Pên, opta,
simultaneamente, por todas” (idem). Nessa ficção, que é a da existência como um
todo (ou melhor, como um nada aberto e qualquer – “qualquer curva de qualquer
destino que desfaça o curso de qualquer certeza”, como diz a música “Qualquer”
do Arnaldo Antunes – detalhe: é a música quem diz e não “ele”, porque se trata
de um jardim e não de uma folha só), não há confusão, como imaginou o Bragança;
há “co-fusões”: entre su[b]postas imagens e su[b]postas palavras; su[b]postas
cores e su[b]postos sons; su[b]postos mares e su[b]postos cais. Enfim,
ver[e]dades que a poesia não se cansa de ensinar – através de palavras e de
outros su[b]postos.
E aí chegamos ao clipe do Bob Dylan. A ideia do clipe é permitir que aquele
que vê “mude os canais”, para ouvir a mesma música em bocas, formatos e
cenários diferentes. O trabalho é anunciado como um “videoclipe interativo”.
Pela tese da “
mimesis tecnológica”, o
Bragança na hora apontaria que as possibilidades estão prescritas e limitadas
pela quantidade de cenários escolhidos pelo músico – e que isso é similar ao
que ele aponta em relação à questão da “técnica”, na ideia mais ampla de
“interatividade”. Diria eu que, na verdade, toda situação é sempre inter-ativa,
na medida [in]exata em que nada existe que esteja fora de alguma conexão
qualquer. De certa forma, os ecologistas sacaram isso bem. Não existe árvore
sem céu, céu sem mar, mar sem peixe, peixe sem pescador – e vice-inversa. Tudo
sempre esteve co-nectado. Aliás, tudo não: é o
nada que está sempre co-nectado, porque se fosse o “tudo” seria uma
coisa só, um tremendo (ou melhor, um parado) “nexão”. Nesse sentido, acho que o
que existe é sempre “inter-atividade”: de símbolos com imagens, de imagens com
cheiros etc etc. E nesse sentido, não me parece que a novidade do clipe esteja
em ser “inter-ativo”; o que ele faz de novo é trazer para o dedo aquilo que a
mente já faz. Mas é sempre bom lembrar que o dedo não existe sem a mente – que,
sem o dedo, arranjaria outra forma de apertar os botões (uma prótese, por
exemplo). Na minha opinião, a grande sacada do videoclipe pode estar em que ele
flexibiliza as inter-ações rígidas da TV – que é, como sabemos bem, um grande
veículo de geração de tendências (porque volta e meia simula que a conexão “A”
com “B” seria, na verdade, o nexão “C” – ou “nexão” não é um ótimo sinônimo
para a bazófia da “objetividade, isenção e imparcialidade” do jornalismo
televisivo?). Essa possibilidade sempre existiu, mas no videoclipe fica bem
elaborada.
O fato é que toda cena de videoclipe chega de uma
forma diferente para cada-uns (são sempre co-nexões) que está assistindo. A
gaita pode lembrar um-alguéns que já se foi; o cabelo do Bob Dylan me lembrou
do meu quando era garoto; e a chinesinha me recordou um livro de poemas
chineses que li no início deste ano. Existem outras possibilidades, claro.
Inclusive aquelas que ainda não foram pensadas por ninguém. Todas elas flutuam
em danças e redun-danças pelos labirintos do Haver (“Haver” é o conceito que o
Magno usa para designar “tudo o que há”). Isso significa que a “abertura para o
novo” não de-pende dos programas técnicos previamente estabelecidos, porque por
mais que as tendências ajam, o aumento efetivo das possibilidades combinatórias
é inescapável. Mesmo que uma certa-pessoas fale só daquelas que serão legíveis
e aceitas pela maioria, as outras acon-teceram, com certeza. Isso porque a
mente funciona sempre inter-ativa-mente. Bifurcando e trans-furcando veredas e
ver[e]dades, para além do óbvio ululante. Eu con-cordo que apesar disso a
burrice é galopante. Galopante como uma pedra maratonista. Mas não custa nada
lembrar que a mar-à-tona só escolhe ser pedra numa das trans-furcações. Noutra
ela pode [im]perfeitamente ser uma asa, que v-aza de um clipe voando, como bola
de tênis que escapa do estádio. Inter-ativa com os ventos da mente, que escapam
a todo tipo de programação.