terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Em busca de práticas que nos tornem atentos

Nas últimas décadas pudemos perceber uma mudança de comportamento e consumo, principalmente após a popularização do uso do computador e da internet. O surgimento de ferramentas on-line, redes sociais e diversas atrações que nos mantêm sempre conectados multiplicou a quantidade de informação e a velocidade com que esta informação circula. Tudo isso aumenta a possibilidade de distração do sujeito e cria, por outro lado, novas formas de percepção e aprendizado.

Jonathan Crary
No livro Suspensões da Percepção, Jonathan Crary descreve como os estudos sobre a atenção atravessaram os séculos e ainda ocupam lugar importante nas pesquisas atuais. Faz um estudo aprofundado revisando conceitos criados por diversos pesquisadores desde o séc XIX buscando apontar o papel da atenção na modernização da subjetividade e comprovar como o que ouvimos, olhamos ou nos concentramos atentamente em nossas tarefas rotineiras, possui profundo caráter histórico, como se estivéssemos nos adaptando ao modo de prestar atenção.

O autor reforça o uso do termo percepção, para enfatizar a presença dos outros sentidos além da visão, como o tato e a audição e outras formas sensoriais, com o objetivo de demonstrar que a visão é apenas uma das partes de um corpo que pode ser capturado, modelado ou controlado por uma série de técnicas externas.

Segundo ele, há um interesse por parte  do poder institucional para que a percepção possa garantir um sujeito produtivo, controlável, previsível, adaptável e que possa integrar-se socialmente, p.29. O autor fala também sobre os limites da atenção e das patologias derivadas da falta dela ou da impossibilidade em controlá-la, além do fracasso de inúmeras tentativas de controle da atenção ao longo do séc XIX.

Crary explica como a lógica da dinâmica do capital passou a impor um regime disciplinar de atenção, para o qual a desatenção passou a ser tratada como problema. Atribuía-se uma série de psicopatias ao funcionamento não convencional da atenção. “A atenção tornou-se assim, um modo impreciso de designar a capacidade relativa de um sujeito para isolar seletivamente certos conteúdos de um campo sensorial em detrimento de outros, a fim de manter um  mundo ordenado e produtivo”.

A proliferação de produtos eletrônicos garante que a docilidade provocada no sujeito esteja sempre ligada a padrões de consumo. Ao mesmo tempo, assistimos à expansão de outro nível de tecnologia disciplinar - “o uso generalizado de potentes psicotrópicos como estratégia de controle comportamental”.

Isso tudo nos parece familiar nos dias de hoje, quando a atenção parece algo difícil de se manter diante de inúmeras possibilidades que se apresentam. Desta forma, surge a necessidade de descobrir maneiras de educar e controlar a atenção.

Howard Rheingold
No livro Net Smart: How to Thrive Online, este é objeto de estudo de Howard Rheingold, que passou a observar seus alunos, pesquisar sobre o tema e a procurar outros pesquisadores que também investigavam o assunto, com o objetivo de encontrar respostas que pudessem ajudar a compreender melhor o atual momento que atravessamos. 

O autor analisa processos biológicos, cerebrais e cognitivos, além dos aspectos culturais, na tentativa de formar uma espécie de manual prático de comportamento, para garantir que estejamos atentos em nossa capacidade de controlar nossa atenção e evitar as distrações.

Rheingold acredita que podemos controlar a atenção através da regulação da respiração e da meditação, também por meio da definição de metas, pois a intenção e a manutenção do foco fazem com que tomemos decisões conscientes. Defende ainda a compreensão do processo de controle da atenção, através do controle executivo.

Há pontos comuns nos dois trabalhos, como a questão da atenção seletiva, quando vários processos sensoriais são inibidos para alcançar clareza, Rheingold descreve esta filtragem de estímulos como efeito Coquetel.




É importante descobrirmos a veracidade das informações, identificar e filtrar todo o lixo que recebemos e nos concentrarmos no que realmente for importante. Através da pesquisa dos autores podemos perceber a importância do desenvolvimento de uma literacia que nos auxilie a reconhecer armadilhas que possam estar por trás das tecnologias comunicacionais cada vez mais presentes em  nosso dia dia.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Caiu na rede é peixe

A observação do pensador marxista Walter Benjamin sobre o autor (e produtor de informações) estaria voltada para uma divisão de interesses e autonomia, considerando as diferenças do escritor burguês e escritor progressista. A liberdade de escrever o que quiser estaria delimitada de acordo com a função e o nicho do autor. Referenciando Tretiakov, Benjamin compara dois tipos de escritores, o operativo e o informativo: enquanto a função do segundo é apenas informar, “a missão do primeiro é não relatar, mas combater, não ser espectador, mas participante ativo”. Mergulhamos aqui em duas grandes dicotomias de teorias do jornalismo, a do espelho e a construcionista que trazem dois olhares distintos sobre produzir jornalismo. Por um lado, o jornalismo deve ser imparcial e relator fiel da realidade, sem dispor de opiniões, como se fosse um espelho a refletir exatamente o que acontece ali, enquanto o construcionista deve atuar ativamente na construção de uma sociedade melhor de forma a delimitar não apenas uma opinião, mas também nortear uma série de reflexões que possam fazer o mundo um lugar melhor.

O que temos agora é uma pluralização gigante de “jornalistas” construcionistas, que produzem conteúdo, promovem vínculos de identificação nos meios alternativos, porque muitas vezes vários grupos de minorias não são retratados como queriam na grande mídia. Sem entrar na grande questão filosófica se o que o conteúdo informativo produzido livremente pelas milhares de câmeras de celulares nas ruas, a fim de identificar um acontecimento social ou um acidente é ou não é jornalismo, o que temos aqui são produtores construcionistas de conteúdos que agem muitas vezes de forma operativa (parafraseando Benjamin) na sociedade. Isso só é possível porque vivemos em uma Cultura da Participação, onde todos são não só emissores de informação, mas também produtores de conteúdo, seja ele ficcional ou não. Dentro dessa Cultura da Participação, que é abarcada pela Cultura de Convergência, onde é possível filmar com o celular e postar logo na rede, ficamos sabendo quase que instantaneamente de incêndios, vemos vídeos produzidos pela galera da comunidade sem corte e delimitação de estereótipos e temos acesso a materiais ficcionais narrativos produzidos por fãs, que são muitas vezes até melhores do que as propostas originais.   

Sob o ponto de vista político, os meios digitais também estão transformando os espectadores em participantes. Isso pode ser observado nas manifestações de julho de 2013 e também em diversas outras questões do dia-a-dia. Em relação às manifestações, graças às mídias alternativas e produção de conteúdo independente dos próprios participantes vieram à tona novos olhares sobre a realidade das manifestações, que a princípio a grande mídia não dava total cobertura por questões políticas e pela amplitude do evento, onde seria impossível captar tudo que acontecia no meio da multidão.  Um bom exemplo é a atuação da Mídia Ninja nas manifestações, que norteava através da cultura da participação um enfoque e enquadramento diferente do convencional proporcionado pela grande mídia. Não só a Mídia Ninja, mas também produções de conteúdos independentes de qualquer pessoa que estivesse com o celular e observasse algo potencial de ser colocado na rede era postado na internet e se tornava conteúdo informativo. Outros exemplos rotineiros de como os espectadores também tornam participantes nos meios digitais é que qualquer postagem pode auxiliar demais receptores e atuar de forma a produzir uma crítica e buscar uma solução para um problema ao mesmo tempo: informes sobre problemas relativos ao trânsito, enchentes, buracos nas ruas, problemas no serviço público de saúde, corrupção, problemas relativos a segurança. Embora esse espaço-rede propicie um mundo de noticias falsas, fofocas ou verborragias desnecessária, é melhor ter uma rede livre do que algum tipo de controle sobre ela. No mundo Big Brother, o que cai na rede é peixe e muitas vezes esse peixe é saudável e não possui espinhos. Eles não só nadam em um mar de informações, mas purificam e reproduzem conteúdo em um oceano onde ocorrem poucas diferenciações de espécie: onde estamos todos juntos e misturados.


domingo, 7 de dezembro de 2014

A tentativa de ser herói

http://drauziovarella.com.br/noticias/por-que-o-consumo-de-ritalina-aumentou-tanto-no-brasil/

A notícia acima apresenta um dado crítico: o aumento do consumo de ritalina – remédio para déficit de atenção – em 800% na última década no Brasil. Apesar do remédio ser muitas vezes “demonizado” por pessoas que acreditam que ter déficit de atenção é normal, enquanto na verdade é um distúrbio (desenvolvendo um discurso preconceituoso sobre os usuários do medicamento e seus motivos) a atenção na sociedade contemporânea muitas vezes é tratada como uma obrigação. O sinal de alerta e produção máxima é cobrado rotineiramente pela sociedade contemporânea, que é cada vez mais competitiva e privilegia as “multipessoas”, que dão conta de várias funções em uma mesma carga de trabalho. Hoje não basta mais ser bom na sua área: tem que ter noção de todas as outras, estar conectado 24 horas por dia, saber o que se passa no jornal, estar sempre disposto a fazer o que for solicitado, dar cambalhota se necessário e não esboçar nenhuma forma o cansaço físico e mental. Nesse cenário, desatenção é sinônimo de preguiça, falta de interesse e resulta em queda de produção. Na tentativa de ser herói muitas pessoas acabam recorrendo desnecessariamente ao medicamento Ritalina, que funciona como uma estimulante do sistema nervoso e deixa a pessoa mais concentrada (um remédio, como citado por Dráuzio Varella, controlado e destinado para pessoas que possuem distúrbio de déficit de atenção). Os resultados podem muito ruins para as pessoas que recorrem ao medicamento sem realmente precisar e a causa dessa mutilação hepática desnecessária é uma castração cultural sobre qual o mercado de trabalho determina como nível de exigência, beirando a perfeição: não bastar ser humano, tem que ser herói com super poderes e condições que vão além das físicas naturais dessa espécie. Em alguns pontos do livro “Suspensões da Percepção”, o autor Jonathan Crary trabalha com o termo “atenção” como modo de interlocução de poder e critica estudos voltados para o DDAH sem profundidade, onde a desatenção é considerada algo catastrófico e ainda cita Foucault: “Já sugeri as formas assumidas pela atenção como um objeto relacionado à organização e ao controle concreto da educação e do trabalho. Nesse sentido, ela é inseparável do que Foucault descreveu como instituições ‘disciplinares’, mas é uma inversão de seu modelo panóptico, em que o sujeito é objeto da atenção e da vigilância. Daí a ideia moderna da atenção como uma sinal de reconfiguração desses mecanismos disciplinares”. Ainda dentro da temática, o pesquisador Howard Rheingold ressalta que a “atenção” nunca está sozinha: a intenção sempre anda de mãos dadas com ela. Portanto, quanto mais atraente for o objeto para mim e maior interesse eu tiver sobre ele, maior será minha atenção. E se hoje há um maior interesse e “atenção” voltada para a internet, para as mídias sociais e para as tecnologias é porque as pessoas possuem algum tipo de interesse por esses temas e por suas possibilidades. Em um mundo bombardeado com informações para todos os lados, Rheingold dá dicas em seu texto “Net Smart” de como podemos focar nossa atenção no que é relevante dentro de um mar de informações, sobretudo na era digital. Para sobrevivermos as possíveis tsumanis de dados que possam surgir, é necessário, segundo Rheingold, que façamos uma seleção para o direcionamento da nossa atenção, ou ao contrário estaremos perdidos. 

Ao contextualizar “atenção” e “intenção” como ideia proposta por Rheingold e o cenário contemporâneo que cobra o estado de alerta de super heróis com multipoderes, o que vemos é o aumento do consumo de Ritalina como uma ilustração da cobrança exacerbada de produção – o que vira uma bola de neve, pois o herói precisa da Ritalina, a Ritalina faz ele se tornar mais cansado e o cansaço resulta no próprio desinteresse. Será que se as metas não fossem diminuídas, ferramentas de motivação e participação fossem estabelecidas, o interesse e a atenção não voltariam sem a necessidade de “fonte mágica”? Pois é nessa terra contraditória de exigências que o super herói enfraquece e o homem desaparece.