sexta-feira, 20 de março de 2015

A interatividade nas obras de Bob Dylan e Chris Milk

Sempre existe espaço para boas surpresas nos atuais projetos audiovisuais veiculados pela internet que convidam o espectador à participação. Associado principalmente ao surgimento das novas mídias, o uso do conceito de interatividade parece ser necessário a estas produções para que sejam bem sucedidas. Assim, um grande número de obras utiliza recursos interativos para conseguirem uma aceitação maior junto ao público. Exemplos disso são o vídeo interativo de Bob Dylan Like a Rolling Stone lançado quase 50 anos depois da música e o projeto Arcade Fire the Wilderness Downtown,  de Chris Milk.

Os projetos são interativos. Dependem de escolhas do interator para alcançarem o objetivo. Embora seja possível assistir todo o vídeo de Bob Dylan apenas em um canal, quando percebemos que trata-se de um aparelho virtual de TV, em que podemos trocar os canais, “zapear” à vontade, nos surpreendemos em descobrir que as celebridades de programas de TV conhecidos estão cantando a música. Mude o canal e verá programas de culinária, moda, venda de usados, telejornal, tudo como deveria ser, mas todos cantando Like a Rolling Stone. Este é o clipe da música. Uma brincadeira com o próprio hábito do zapping, mudamos o canal, mas a música continua.

Like a Rolling Stone - Bob Dylan
No projeto Arcade Fire the Wilderness Douwtown,  de Chris Milk, a escolha por parte do interator é fundamental para o funcionamento do mesmo. O vídeo final só é gerado caso seja digitado um endereço no campo de busca, no caso, o seu endereço de infância. O resultado é surpreendente e imediatamente ativa antigas memórias. O programa gera uma narrativa que sincroniza em janelas pop-up um vídeo que mescla imagens gravadas especialmente para o projeto, com imagens de ruas provenientes do arquivo do Google Street View criando uma história onde o personagem percorre sua rua, visualiza a casa onde morou e a de seus vizinhos.


 Arcade Fire the Wilderness Downtown,  de Chris Milk.

Ambos os trabalhos utilizam arquivos de imagens que são acionados de acordo com a escolha do interator. Tais arquivos  possuem um número de imagens pré-definidas, mesmo no caso do arquivo do Google Street View. Este é o ponto chave da principal discussão sobre a interatividade. Como dizer que um projeto é interativo quando existe um limite de interação, se o interator só pode agir dentro de um banco de dados específico e pré-definido?

Talvez a resposta seja o que será feito dentro das possibilidades apresentadas. Desta maneira, segundo Levy, o espectador que interage com a obra acaba escrevendo sua própria obra, participa da estrutura do hipertexto e cria novas ligações mesmo que dentro de um universo limitado. Para Santaella (2011), o espaço aberto para o receptor passa a ser um espaço de inclusão, quando o artista convida o público a remixar sua proposta, curioso com as mutações que podem resultar do papel desempenhado pelo público.

Talvez por isso a interatividade ainda que dentro de limites previstos por programadores seja uma receita de sucesso para novos produtos culturais, pois aliada à criatividade desperta em nós sensações que se potencializam com a ideia de sermos nós, enquanto co-criadores quem definimos os rumos que tomarão a história que é contada.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Benjamin e o Século XXI: como o conceito de autoria evanesce diante das mídias digitais


O ensaio "O autor como produtor", de Walter Benjamin (1934) traz importantes considerações sobre o debate de autoria e produção, que ainda podem repercutir nos tempos atuais. Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que Benjamin era marxista e que sua concepção tanto de autoria como relacionado ao produtor são reflexos de seus ideais.

Ele trata, com a mesma dicotomia burguesia x proletariado, a relação entre autor x produtor. Enquanto o primeiro representa uma lógica burguesa, na qual é apresentada uma obra para fins de consumo, sem um posicionamento crítico acerca da política e da sociedade (pois para que o status desta classe se mantenha, esta não pode ser questionada), o produtor possui domínio da técnica e utiliza este conhecimento como forma de se engajar de forma crítica contra os meios de produção e o status quo. Assim, o produtor atua, de certa forma, como "produtor de mudanças sociais"; enquanto o autor exerce um papel de certa forma narcisista, no qual figura a importância de seu nome em relação a obra, e não o contrário. 

É fácil perceber esta dicotomia, que subverteu até mesmo autores e obras que antecederam a ascensão da burguesia (e muitas delas até mesmo obras que foram críticas da sociedade a qual o autor vivia): a importância maior não é "Romeu e Julieta", e sim uma obra de Shakespeare. Esta lógica permanece até os dias atuais e implica diretamente em dilemas como a questão dos Direitos Autorais, como vamos explorar posteriormente.

Para o produtor, a ideia prevalece em relação a autoria. E talvez esta característica perpasse até os dias atuais mais do que uma intervenção política direta por parte do produtor.

Há sim a presença inquestionável de produtores de obras culturais, artísticas e de conteúdos diversos que vão tratar da intervenção política direta, pragmática, que promova uma inquietação na forma de poder a qual pretende desestabilizar. Mas até mesmo ações mais simples, como uma produção colaborativa de uma história no ambiente digital, na qual a questão da autoria se dilui completamente, importando o resultado final desta composição, são ações políticas, mesmo que os participantes não reflitam sobre isso.

Quando se questiona a autoria, os direitos autorais, os direitos de imagem, está questionando uma lógica capitalista na qual a produção é mercadoria. Um exemplo claro recente foi o processo movido por Chico Buarque contra um shopping por uso indevido de imagem, quando ele fez apenas o mesmo movimento que milhões de internautas fazem todos os dias: criaram um meme em cima da capa do primeiro disco do músico. Provavelmente poucos usuários sabem que estão fazendo um ato de subversão quando criam um meme com esta imagem. Mas estão. Está sendo questionado ali o uso de uma imagem, com direitos autorais, em prol de uma produção que não está diretamente relacionada com política.

A Internet se tornou um meio propício para colocar definitivamente um ponto final na questão da autoria. No momento que se torna possível que qualquer pessoa possa produzir um conteúdo a partir de outro já criado, ou uma produção realmente colaborativa, a autoria se torna frágil: como controlar todos os usuários que subvertem qualquer conteúdo um dia criado por Chico Buarque, desde suas capas de disco, fotos, download de suas músicas e livros, entre outros? E até que ponto isto é realmente lógico na sociedade das mídias digitais?

Por isto, cada vez que é colocado em xeque a questão da autoria, o usuário não sabe que está atuando como produtor, da forma que Benjamin estabeleceu. Não que isto não fosse possível antes - as paródias de Duchamp do quadro da Mona Lisa são um exemplo claro disto. Mas os meios digitais puderam tornar acessível este tipo de postura por qualquer usuário. Assim, direta ou indiretamente, este tipo de mídia propiciou uma postura de produtor por parte do usuário. A falha está em ele não ter consciência da sua ação política. E nisto é preciso que outros produtores conscientes possam exercer suas produções a fim de levar este conhecimento aos demais usuários dos meios digitais.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

A polêmica sobre o conceito de interatividade



Na academia, qualquer tipo de conceituação acaba gerando algum tipo de conflito. Isto acontece porque todo conceito parte de um ponto de vista, um pressuposto, e há diversas óticas operando em cima de um mesmo objeto (aquele que está sendo conceituado por pesquisadores e intelectuais da área).

O conceito de interatividade, que ficou em voga com o despontar da Internet, é um exemplo deste conflito acadêmico. Isto porque interatividade é concebido por alguns pesquisadores como a mudança de sentido que intervém no sentido original da obra. Assim, quando um leitor lê um livro e subtrai dele um certo entendimento que pode não ter sido o planejado pelo autor, ele estaria interagindo com a obra e, portanto, aplicando a interatividade. A produção de sentido seria feita na mente do interpretador, E esta acepção mostra que a interatividade não é um elemento que surge com os meios digitais - este apenas a potencializa.

Em contrapartida, outro conceito de interatividade parte do pressuposto de que o usuário possa intervir diretamente no objeto com o qual está interagindo, modificando sua estrutura, agindo de forma ativa. Atribuindo este conceito, encaixaria aqui as ações em jogos online e videogames, onde você pode optar por diferentes caminhos e cada um leva a um resultado diferente. Porém, as consequências de cada escolha já são pré-programadas - o usuário só tem que definir qual caminho irá seguir, mas o resultado delas não pode ser modificado.

Há ainda outros críticos que consideram que nenhum dos exemplos anteriormente citados seriam interatividade realmente, pelo fato de que o usuário não pode ter domínio dos resultados de suas escolhas, apenas seguindo um programa pré-estabelecido. Para estes, a interatividade só existe quando o usuário possui domínio sobre suas ações e os resultados destes. Um exemplo deste ponto de vista são as histórias criadas colaborativamente. O responsável pelo projeto começa dando as diretrizes iniciais, e posteriormente os usuários dão a continuação, com total liberdade para seguir o caminho que desejarem, deixando para o próximo continuar também da forma que quiser.

Ao invés de colocar as três concepções em choque, como se elas se contradissessem, podemos reuni-las, como se as três fossem categorias diferentes da concepção de "interatividade". O primeiro caso se trata de Interatividade Reativa: a pessoa não pode modificar o objeto diretamente, podendo apenas reagir a ele, modificando o sentido ao qual o objeto se propôs.

O segundo conceito seria uma Interatividade Ativa Parcial: o sujeito consegue agir efetivamente sobre o objeto com o qual interage, mas não consegue modificá-lo por completo. Não possui domínio sobre as consequências de sua interação. Este seria o caso do clipe de Bob Dylan para a música Like a Rolling Stones e do projeto The Wilderness Downtown.

Já a terceira concepção se trataria de uma Interatividade Ativa Total: o sujeito consegue modificar o objeto, ajudando-o a ser construído ou determinando suas modificações. Outro bom exemplo disso é a Wikipedia, na qual o usuário colabora ativamente com o conteúdo, sendo a sua participação o resultado final. A intervenção feita ali é apenas para fins de correção, até que outro usuário interaja com este verbete.

Unindo essas três concepções, é possível enriquecer a concepção acadêmica de interatividade, sem descartar qualquer uma das acepções, que possuem sim seus pontos verdadeiros e relevância para o campo comunicacional.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A Gestell e o artificialismo da transformática

É uma tarefa problemática pensar a tecnologia atual através da visão de Heidegger. Isso porque ele pensava em dois tipos tecnológicos, um pré-moderno (ou pré-industrial) e profundamente envolvido com a natureza - sendo parte dela, em certo sentido - e outro moderno e destacado da natureza. Nesse sentido ele vai chegar na noção de "Gestell", que, segundo José Carlos Vasconcelos e Sá, significa a essência da tecnologia moderna como algo autônomo em relação ao humano ("A crítica da técnica e da modernidade em Heidegger e McLuhan", p. 127). Desse cenário surge então a noção de 'bestand', que, ainda segundo Sá, é como Heidegger representa o resultado dessa "transcendência" da tecnologia em relação ao humano, qual seja, o de um mundo habitado por "objetos sem valor em si, excetuando o uso que se lhes possa dar, (...) objetos produzidos sem individualidade real - no fundo, objetos degradados do humano" (idem, 127).

Novamente pensando através da noção de rede, essa divisão que o filósofo faz entre "natureza" de um lado e "tecnologia" do outro perde a força. Em certo sentido, sendo o homem em grande medida ainda um animal, tudo o que ele faz acaba sendo parte, em maior ou menor medida, do que se chama normalmente de "natureza". Além disso, se pensarmos a noção de tecnologia de uma forma mais ampla, alicerçada pela noção de rede, ela está em tudo, desde a produção de uma fogueira (para a qual se usa a tecnologia das mãos etc) até os computadores. Em artigo recente, o escritor Affonso Romano de Santanna (em seu livro "Ler o mundo") afirmou que outro exemplo de tecnologia é a linguagem. E a partir dessa ótica teremos uma infinidade de outros exemplos.

Outra questão importante levantada pela pergunta é a da produção de imagens. O mundo atual beira a 'vertigem' por conta da produção incessante de novas imagens, para a qual a capacidade humana não estaria preparada. A dúvida que surge é: alguma vez o ser humano esteve pronto para receber a quantidade de imagens que o mundo produz? De fato, nas épocas pré-computador, a quantidade de informações que chegava a uma pessoa era menor. Mas era menor apenas por conta das formas tradicionais de controle. Isso não significa que não existisse potencialmente uma quantidade imensa de imagens. Nos parece que, de uma forma ou de outra, as pessoas hoje utilizam os seus filtros - até porque, novamente relembrando Funes, o conto de Borges, trata-se de fato de uma questão de limite, já que é impossível pensar em várias coisas ao mesmo tempo) -, que agem como as formas de controle mais antigas.

Sob esta perspectiva, não podemos escapar de considerar a visão de Heidegger algo fatalista - e, arriscaria dizer, outro algo "antropocêntrica" (ainda que ele não dispusesse da noção de rede, por exemplo, o que minimiza esse ponto). É claro que os jogos de poder não acabaram e isso significa que não se pode cair na posição oposta, de uma visão absolutamente otimista em relação ao que se chama de tecnologia. Nesse sentido inclusive cabe a colocação de Sá, quando afirma que "a análise de Heidegger procura (...) tornar visível o equívoco persistente na tradição filosófica ocidental em considerar a técnica algo neutro e passível de controle" (idem, 128). Mas não para concluir que ela seja um ente autônomo e que rebaixaria o homem a um papel secundário. Nos parece que o processo é mais heterogêneo e "mesclado", a tecnologia fazendo parte do que é humano da mesma forma que o contrário.

E aí temos a questão da arte. Nesse contexto, vale citar a transformática. Nela, a noção de “arte” surge sublinhada no radical ART, presente em termos como “artifício", "artificial", "artificialismo", "artista", "artefato" e, especialmente, "articulação”. Assim sendo, noções como “criação” e “arte” estão ligadas, aqui, à ideia de articulação, ou seja, de produção de novas 'transas', baseadas sempre na lógica do revirão, e portanto, na lógica da suspensão das oposições e na consideração e produção do maior número possível de possibilidades, em qualquer situação. Esse deslocamento, que funciona tendo como referência o revirão, caminha sempre no sentido da produção de novos artifícios, portanto de novas formas de arte, que permitam a flexibilização das duras oposições que invariavelmente ocorrem no nível sintomático do cotidiano e da produção cultural humana – como, por exemplo, certeza-incerteza, verdade-mentira, fato-ficção, arte-realidade etc. Nesse sentido, toda arte, para a transformática, é, no mesmo processo, um ato analítico. É quando a formação acessa o revirão e flexibiliza as diferenças a um nível de indiferença radical, o que significa que a atividade se orienta pelo contato não apenas com os focos, mas também com a extensa zona franjal que constitui a formação como rede.

Partindo desses pressupostos, a visão de Heidegger ganha ainda mais o contorno do fatalismo. O "enquadramento" passa a ser não o da tecnologia em relação ao ser humano, mas sim o das formações excessivamente recalcadas da sintomática cotidiana, ou seja, daquelas que tenham dificuldade de variar as suas "transas" - e, portanto, novas "articulações" -, em relação às possibilidades de flexibilização do artificialismo. Para a transformática, o "Gestell" estaria aí. E aquilo que se chama de tecnologia passa a ser apenas mais um pedaço dentro desse enredo - e não um protagonista que estaria orquestrando, de forma transcendente, uma "degradação do humano" (como diz Sá à p. 127).

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Atenção e Há-tensão das formações contemporâneas

A riqueza do trabalho de Jonathan Crary reside no fato de que ele transita de forma cuidadosa pela ambivalência do tema que escolheu pra desenvolver, o tema dos mecanismos de atenção, notadamente no século XIX e na virada deste para o século XX. Ou seja, ainda que aponte para os aspectos disciplinadores e espetaculares da virada da modernidade (o que mostra sua ligação com as ideias de Foucault e Debord, respectivamente), ele não deixa de citar constantemente o outro lado, ou seja, as possibilidades contraindutivas presentes no fenômeno que ele designa como "atenção".

Vale colocar que, mesmo dentro desta perspectiva "bipolar", que nos interessa, o autor adota a 'subjetividade' como um referente frequente, o que parece ser inescapável diante da escolha da "atenção" como tema central de análise. Não é a nossa, que já que ele não escapa de seguidas vezes trabalhar com uma divisão entre "mundo exterior" e "experiência perceptiva interna" que não cabe, por exemplo, na noção de rede - assim como também não se encaixa com a transformática, que também pensa o que já se nomeou "sujeito" ou "subjetividade" como uma "rede de formações", que seriam aglomerados simbólicos cambiantes e em constante relação com outros aglomerados. Essa divergência, ainda que deva ser colocada, não apaga entretanto a importância de várias questões levantadas pelo autor.

Uma dessas questões ele coloca quando diz que "a lógica dinâmica do capital começou a enfraquecer de maneira drástica qualquer estrutura estável ou durável da percepção" (35). Ele sugere então, numa afirmação algo foucaultiana, que "essa lógica impôs ou procurou impor simultaneamente um regime disciplinar de atenção" (idem). Crary faz então um passeio pelo debate teórico a respeito da atenção e temas adjuntos, passando por um grupo de autores bem amplo, que vai desde Kant, Schpenhauer e Freud até Foucault, Debord e Hannah Arendt, para situar tanto as visões que pensavam a atenção como um mecanismo de defesa repressivo e disciplinar contra o "perigo" da livre associação (que remete a certos princípios freudianos, como o do superego e da neurose), quanto aquelas que, ao contrário, viam na atenção uma possibilidade daquilo que o autor chama de "novas condições de subjetividade" (47). Por isso ele cita "as relações inconstantes entre o poder institucional/discursivo, de um lado, e uma composição de forças que resistia de maneira inerente à estabilização e ao controle de outro" (idem). Em outras palavras, a atenção como 'fomento da passividade e do automatismo' de um lado, e como 'estratégia de resistência voluntária' de outro ("a atenção como expressão da vontade consciente do sujeito autônomo" (48)).

O texto tem o mérito de conter um apanhado histórico e crítico e, no nosso entendimento, chega em seu ápice quando pondera que a atenção traz em si as condições para sua própria desintegração - "o estado de atenção [é] na verdade inseparável do de distração, devaneio, dissociação e transe" (70). E isso nos traz à pergunta, ou seja, ao mundo contemporâneo.

Em nossa concepção, não há uma diferença estrutural que distingua a atenção no mundo moderno e a atenção no mundo contemporâneo. Na verdade, nos parece que se trata, fundamentalmente, do embate histórico entre o foco e a flexibilização da experiência. Na Idade Média, por exemplo, certamente esse embate se dava de forma sistemática no jogo das estratégias religiosas para angariar a 'atenção' dos fieis (no que um estudo mais detalhado sobre os rituais e praxes da liturgia pode ajudar bastante a desenhar). Mesmo com toda a força da imposição do poder católico, isso certamente não apagava a existência de "experiências flexíveis" no âmbito da vida particular de cada pessoa que lá vivia. A diferença maior da nossa época está, talvez, no fato de que a modernidade, ao contrário das épocas tradicionais, eleva a "experiência flexível" ao status de eixo, o que automaticamente empurra as tentativas de controle para o campo da sugestão e não mais da força "absolutista" (ainda que esta sobreviva como última instância, estritamente policial).

O texto de Crary nos trouxe a lembrança do conto de Borges, "Funes, o memorioso", a história de um homem que não consegue mais esquecer e acaba escravo dos detalhes. É um conto que está carregado da mesma ambivalência que impregna o artigo de Crary: o foco excessivo nos leva ao ápice da repetição mecânica. O "esquecimento" (que Borges traz como eixo e Crary cita quando fala de Nietzsche) acaba sendo uma parte inescapável de qualquer "foco", o que aparece na transformática quando esta trabalha com a noção de 'formações', formadas por pólos, focos e franjas. O campo das franjas, tudo aquilo que existe na rede mais ampla daquela formação, pode ser pensado como aquilo que reside no entorno de toda "atenção" (ou foco), ou seja, o que "esquecemos" voluntariamente para poder exercitar o enquadramento pontual de alguma coisa. Nesse sentido, o foco é um ponto de 'redução' que recalca o restante das possibilidades, para poder trabalhar temporariamente num núcleo de situação que, apesar do recalque, não ignora a existência das franjas (ao contrário, trabalha com elas como parte constitutiva do processo). O que em certo sentido mescla os dois pólos da atenção trazidos por Crary: associação e dissociação no mesmo embalo.

Por último, cabe citar a crítica que o autor faz à televisão e ao computador que, segundo ele, "apesar de convergirem para uma operação maquinal única, são processos antinômades que fixam e estriam. São métodos para controlar a atenção por meio de compartimentalização e sedentarização, tornando os corpos controláveis e úteis, ao mesmo tempo em que geram a ilusão de escolha e 'interatividade'" (101). Essa crítica diz respeito ao mundo contemporâneo e pode fechar esta resenha trazendo a questão chave: os mecanismos de atenção na sociedade contemporânea. Há o TDA (Transtorno de Déficit de Atenção) que o autor cita - e que, apesar de demonstrar uma dificuldade inegável do exercício do rigor ("atenção") por parte dos estudantes atuais, pode ser também um aspecto que ilustra de forma significativa a falência dos projetos educacionais institucionais que trazemos desde o iluminismo pra cá -, há também o fenômeno do marketing. O marketing parece ser parte fundamental da ambivalência descrita pelo autor em sua tese: por um lado, aponta para o reinado das mensagens curtas e que demandam um mínimo de cuidado reflexivo (o importante é seduzir, atrair a 'atenção' para o consumo rápido e sem maiores questionamentos); entretanto, por outro lado, a própria existência do marketing parece apontar para o fato de que estamos numa época na qual os mecanismos de controle e disciplina existem num formato razoavelmente flexível. Ora, se preciso criar uma estratégia de convencimento que atraia a atenção do consumidor, é porque essa atenção não existe garantida a priori - o que aponta para a existência de um jogo e não de um sistema de controle. Resta refletir até que ponto esse jogo não acaba resultando numa lógica que empobrece o diálogo dos focos com suas franjas - o que acaba em formações excessivamente recalcadas por excesso de foco. Sem entretanto cair no pólo oposto, de uma crítica da tecnologia como um instrumento que carregue esse empobrecimento como essência. Avaliar o tipo de atenção que está em jogo em cada situação é o mais importante, para não estancar em nenhum dos dois lados.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Atenção em fluxo contínuo

A atenção e a falta dela foram problematizadas desde que o capitalismo passou a ditar a especialização como modo de acesso à vida urbana e aos meios de produção. Esse é o argumento de Jonathan Crary, historiador da arte e autor de Suspensões da Percepção, que propôs uma reflexão sobre a temática "atenção" segundo a escola foucaultiana. Desse modo, treinar o foco perceptivo do indivíduo, entre outras coisas, estaria relacionado ao controle e à disciplina, requisitos fundamentais para o aprendizado aos moldes liberais: letramento, raciocínio lógico e empreendedorismo.

Crary critica o senso comum de que a fragmentação da atenção e a descentralização do sujeito são fenômenos contemporâneos à disseminação das tecnologias de informação e comunicação. Para o autor, o conceito de atenção está intimamente ligado ao de percepção, sendo esse constantemente alterado pela história dos meios. Quando a representação da imagem passou a desafiar a ideia de um estado natural das coisas (a percepção passa a ser o resultado de uma fisiologia específica, o que faz dela variável e duracional), a didática do positivismo dá lugar à valoração da subjetividade.

Subjetividade essa que apenas se intensificou com o preceito fundamental (se é que podemos considerá-lo assim) da pós-modernidade, o antifundamentalismo. Se a percepção sobre as possibilidades do mundo e do homem alteram os meios, os quais, por sua vez, modificam radicalmente o comportamento humano em todos os aspectos da vida social, como conciliar a rigidez do sistema econômico e a falibilidade da política com a consciência cada vez mais dilatada dos cidadãos?

É no rastro reflexivo de Crary que se acrescenta o didaticismo de outro autor, preocupado com o multidirecionamento da atenção dos indivíduos. Howard Rheingold, em seu livro: Net Smart: how to thrive online, analisa o comportamento humano frente ao desafio de ter uma participação ativa e consciente (o autor utiliza o termo "mindful") enquanto conectados. Sem cair na historicidade da percepção, Rheingold centra seu estilo no praticismo. Net Smart pode ser lido como um manual, um guia para o exercício da cidadania digital e sucesso no equilíbrio entre foco e dispersão.

Ao enfatizar que a atenção pode ser treinada, Rheingold assume uma postura de indiferença quanto às críticas ao sistema, nas quais se baseia a obra de Cary. Como o primeiro narra, a própria experiência de professor de alunos conectados o tempo todo lhe causou uma inquietação. Estariam aquelas pessoas menos presentes, ou presentes de maneira diferente, em vários lugares ao mesmo tempo? Talvez essa seja a pergunta que vale a pena ser investigada, mas Rheingold se concentra na explanação de técnicas de adequação do comportamento multitarefa aos padrões escolares, sociais e profissionais. Já Crary visiona a relação dos seres com suas tecnologias da seguinte maneira: "será uma colcha de retalhos de efeitos flutantes em que indivíduos e grupos continuamente reconstituem a si mesmos" (tradução livre da citação, p. 370).

No entanto, é compreensível a estratégia de Rheingold frente ao discurso científico. Esse, até onde foram as investigações de Net Smart, identifica o cérebro humano como um processador de um único núcleo, ou seja, segundo essa metáfora, estaríamos preparados para desenvolver bem apenas uma tarefa de cada vez. Sob esse mesmo preceito está a escola que preza pelo aprendizado subdividido em disciplinas, com pouco diálogo entre elas, continuando a se distanciar da percepção da "geração Y" sobre o mundo, onde tudo se conecta com tudo. Por mais que as pesquisas possam realmente revelar uma delimitação biológica, deixa-se de lado uma questão fundamental: a diacronia dos regimes formais em relação às possibilidades reais e presentes de aquisição de conhecimento e de formas de relacionamento, seja com o outro ou com o próprio corpo. 

Avançando nas discussões sobre o tema, cabe elaborar, a partir do ponto de vista dos dois autores, uma terceira via de raciocínio. Em Suspensões da Percepção, Crary lamenta a descontinuidade do interesse geral por pesquisas com hipnose, que no século XIX revelaram a impressionante capacidade da mente de suspenção temporal e espacial, ao mesmo tempo do exercício de profunda concentração. Em prol de um reavivamento empírico, e por hora este parece um questionamento interessante, por mais que as presentes pesquisas sejam mais ou menos categóricas em limitar a capacidade do cérebro de adaptação aos nossos hábitos cada vez mais simultâneos e fugazes, o que dizer da fisiologia daqueles que já nasceram em ambientes altamente interativos? Estarão esses melhor preparados para lidar com múltiplas demandas de atenção ao mesmo tempo, sem com isso sofrer prejuízo cognitivo em cada uma delas?

É de se imaginar que, se uma pessoa como eu for submetida a um teste sobre o quão bem ela se sai diante de múltiplas tarefas, é provável que se saia mal, pois durante a maior parte da vida terá sido acostumada a trabalhar bem apenas com o foco unidirecional, pois esse foi o modo de alfabetização nas décadas de 1980 e 1990. Não só na escola, mas nas famílias onde, citando apenas um exemplo, o costume de não ligar a TV durante as refeições também revelava a preocupação com uma certa presença "espiritual" centrada em um só momento. 

Cenas do filme The Switch (2010)
Cenas do filme The Switch (2010), em que o personagem Wally (Jason Bateman) se irrata com o zapping de Sebastian (Thomas Robinson)
Sendo assim, o tempo e o interesse contínuo pelo tema trarão novas respostas. No entanto, para o que interessa ao tempo presente, cabe destacar que, goste-se ou não, a sociedade é seletiva, controladora e preza pela capacidade de desempenho. Se, biologicamente, ainda não somos capazes de conciliar a relação com nossos dispositivos com as formalidades exigidas pelo sistema educacional e mercadológico, resta o uso de estratégias. Treinar a atenção significa mais do que exercer a concentração para uma determinada tarefa. Segundo a abordagem gestáltica, o único modo de estar presente no mundo, com todo o potencial que ele oferece, é entrar no modo awareness, prestar atenção no ato de prestar atenção, a consciência do aqui e agora. Na prática, significa saber como funciona o sistema, usá-lo para um determinado objetivo e subvertê-lo quando não se precisa dele.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Multitasking: mitos e mecanismos de controle

Multitasking. Esta parece ser a palavra-chave deste início de Século XXI. Estar em um lugar e exercer apenas uma tarefa, ter atenção para apenas um fato parece ser algo ultrapassado, nonsense, totalmente fora da realidade. Se a Internet já nos aproxima de toda e qualquer informação, principalmente com a possibilidade dada pelo Google com seu modelo de pesquisa, os aparelhos móveis potencializaram a exigência desta nova qualidade.

Porém, como o autor Rheingold ressalta no primeiro capítulo de seu livro Net Smart - How to Thrive Online, é muito improvável que um ser humano consiga realmente dedicar exatamente a mesma atenção para dois focos completamente distintos. O autor cita diversas pesquisas realizadas por neurocientistas e outros profissionais da saúde que constatam os resultados que ele mesmo havia notado entre seus alunos na sala de aula. Ele inclusive dá conselhos, os quais o próprio autor testou, para conseguir controlar as distrações tentadoras do mundo contemporâneo para que possa ter controle sobre sua atenção. Voltaremos a isto posteriormente.

Mas, se a atenção não pode ser múltipla, o que então nos dá a sensação de sermos multitasking?
Ilustração do livro Net Smart: How to Thrive Online,
e que mostra a necessidade de se" estar atento a estar atento".

Na verdade, nossa atenção é fragmentada. Ao desviar os olhos de um interlocutor para a tela do seu tablet, há uma perda significativa da atenção dada ao amigo, professor, colega, chefe a sua frente para o conteúdo que está ali. E isto nos dá a falsa sensação de que estamos realmente fazendo duas coisas ao mesmo tempo. Porém, não são todas as pessoas que se sentem confortáveis com esta falsa sensação: não é a toa que o uso indiscriminado de medicamentos para tratamento de TDAH aumentou drasticamente nos últimos anos. Iludidos por um discurso de que pessoas normais conseguem se concentrar perfeitamente em algo e não ter a sua atenção desviada por outras coisas faz com que estudantes, concurseiros, pesquisadores, entre outras pessoas que de alguma forma exercem trabalhos intelectuais acabem se rendendo ao uso de Ritalina, por exemplo.

Como todo discurso, há por trás dele intenções que podem estar nítidas ou não para a maioria das pessoas. Neste caso, que parece que não, é preciso ficar atento, principalmente pesquisadores, para as reais razões de se alimentar que é necessário ser alguém capaz de dar múltipla atenção a diferentes estímulos ambientais (música, filme, telefone tocando, mensagens no Whatsapp, olhar a lista de e-mails, ver atualizações do Facebook, e por aí afora).

Atenção como forma de controle e disciplina

Crary, no primeiro capítulo do livro Suspensões da Percepção trata também sobre atenção. O autor também afirma que as percepções se modificam com as novas tecnologias - afinal, são novos tipos de signos que entram em contato com a mente interpretadora, que anseia por eles, por serem instigantes, diferentes, atraentes. A partir deste novo paradigma tecnológico, perde-se o domínio da visão como forma de comprovar a percepção sensorial: agora ver, ouvir, cheirar, sentir, tocar, enfim, todo estímulo aos sentidos é uma prova da existência do objeto.

Posteriormente ele irá trazer Foucault e a sociedade disciplinar, afirmando que ela também é uma forma de disciplinar a sociedade. Mais do que isso, a atenção é um instrumento não só de controle, mas também de vigilância do ser humano.

Quem possui domínio sobre a atenção de determinado ser, consegue exercer controle sobre sua forma até mesmo de apreender a percepção. Um exemplo simples: se uma plataforma como o Facebook atrai mais atenção do usuário do que qualquer outra rede social ou outra tarefa que pode ser realizada no ambiente virtual, ele consegue prender aquele usuário em seus protocolos (que muitas vezes operam justamente como mecanismos de controle sobre o que o usuário pode e não pode fazer, por trás de uma falsa sensação de liberdade na rede). 

A partir deste controle, que molda as ações dos seres na rede, quanto mais tempo ele destinar a dar atenção para determinada plataforma e não outra, mais informações ele poderá dar para os instrumentos de vigilância. Outro exemplo simples: um usuário que passe 20 minutos no Facebook sem interrupção tem mais chances de encontrar conteúdos que lhe agrade, páginas para curtir, fotos para compartilhar, comentários sobre suas visões de mundo e, consequentemente, repassando informações não só para as agências de marketing, mas também para setores governamentais. Ou seja, a disputa pela atenção é imprescindível neste contexto.

E, por isso a valorização do multitasking. Sabendo que é impossível que um usuário utilize apenas uma ferramenta neste meio, o discurso de ser "multitarefa" é vendido para que os usuários tentem destinar o mesmo tempo para diversas plataformas: Facebook, Google, YouTube, e-mail, enfim. Vale aqui a máxima "se não pode vencê-los, junte-se a eles". 

A intenção como forma de contrabalancear o controle

Porém, da mesma forma que não há como simplesmente ficar totalmente offline, é possível utilizar-se de mecanismos para tentar driblar este controle e vigilância excessivos. Se você utilizar estes meios já sabendo a intenção deles pode, a partir disto, fazer uso da sua atenção fragmentada de forma consciente. 

Exercícios de concentração e controle da atenção, tal como Rheingold mostra em seu livro podem ser boas estratégias para não ser seduzido facilmente por estes mecanismos, podendo ter o direito de "se libertar" delas quando desejar. Além disto, é possível "passar a perna" nestes mecanismos de vigilância. O uso consciente e intencional das redes sociais evitando a exposição em ações diretas e indiretas, o uso de criptografia em mensagens de e-mail e o uso de navegação anônima pode não evitar que estas ferramentas continuem apelando para quererem sua atenção, mas é uma forma de "sabotá-las", por assim dizer, demonstrando que não está tão suscetível assim a estes mecanismos.