domingo, 7 de dezembro de 2014

A tentativa de ser herói

http://drauziovarella.com.br/noticias/por-que-o-consumo-de-ritalina-aumentou-tanto-no-brasil/

A notícia acima apresenta um dado crítico: o aumento do consumo de ritalina – remédio para déficit de atenção – em 800% na última década no Brasil. Apesar do remédio ser muitas vezes “demonizado” por pessoas que acreditam que ter déficit de atenção é normal, enquanto na verdade é um distúrbio (desenvolvendo um discurso preconceituoso sobre os usuários do medicamento e seus motivos) a atenção na sociedade contemporânea muitas vezes é tratada como uma obrigação. O sinal de alerta e produção máxima é cobrado rotineiramente pela sociedade contemporânea, que é cada vez mais competitiva e privilegia as “multipessoas”, que dão conta de várias funções em uma mesma carga de trabalho. Hoje não basta mais ser bom na sua área: tem que ter noção de todas as outras, estar conectado 24 horas por dia, saber o que se passa no jornal, estar sempre disposto a fazer o que for solicitado, dar cambalhota se necessário e não esboçar nenhuma forma o cansaço físico e mental. Nesse cenário, desatenção é sinônimo de preguiça, falta de interesse e resulta em queda de produção. Na tentativa de ser herói muitas pessoas acabam recorrendo desnecessariamente ao medicamento Ritalina, que funciona como uma estimulante do sistema nervoso e deixa a pessoa mais concentrada (um remédio, como citado por Dráuzio Varella, controlado e destinado para pessoas que possuem distúrbio de déficit de atenção). Os resultados podem muito ruins para as pessoas que recorrem ao medicamento sem realmente precisar e a causa dessa mutilação hepática desnecessária é uma castração cultural sobre qual o mercado de trabalho determina como nível de exigência, beirando a perfeição: não bastar ser humano, tem que ser herói com super poderes e condições que vão além das físicas naturais dessa espécie. Em alguns pontos do livro “Suspensões da Percepção”, o autor Jonathan Crary trabalha com o termo “atenção” como modo de interlocução de poder e critica estudos voltados para o DDAH sem profundidade, onde a desatenção é considerada algo catastrófico e ainda cita Foucault: “Já sugeri as formas assumidas pela atenção como um objeto relacionado à organização e ao controle concreto da educação e do trabalho. Nesse sentido, ela é inseparável do que Foucault descreveu como instituições ‘disciplinares’, mas é uma inversão de seu modelo panóptico, em que o sujeito é objeto da atenção e da vigilância. Daí a ideia moderna da atenção como uma sinal de reconfiguração desses mecanismos disciplinares”. Ainda dentro da temática, o pesquisador Howard Rheingold ressalta que a “atenção” nunca está sozinha: a intenção sempre anda de mãos dadas com ela. Portanto, quanto mais atraente for o objeto para mim e maior interesse eu tiver sobre ele, maior será minha atenção. E se hoje há um maior interesse e “atenção” voltada para a internet, para as mídias sociais e para as tecnologias é porque as pessoas possuem algum tipo de interesse por esses temas e por suas possibilidades. Em um mundo bombardeado com informações para todos os lados, Rheingold dá dicas em seu texto “Net Smart” de como podemos focar nossa atenção no que é relevante dentro de um mar de informações, sobretudo na era digital. Para sobrevivermos as possíveis tsumanis de dados que possam surgir, é necessário, segundo Rheingold, que façamos uma seleção para o direcionamento da nossa atenção, ou ao contrário estaremos perdidos. 

Ao contextualizar “atenção” e “intenção” como ideia proposta por Rheingold e o cenário contemporâneo que cobra o estado de alerta de super heróis com multipoderes, o que vemos é o aumento do consumo de Ritalina como uma ilustração da cobrança exacerbada de produção – o que vira uma bola de neve, pois o herói precisa da Ritalina, a Ritalina faz ele se tornar mais cansado e o cansaço resulta no próprio desinteresse. Será que se as metas não fossem diminuídas, ferramentas de motivação e participação fossem estabelecidas, o interesse e a atenção não voltariam sem a necessidade de “fonte mágica”? Pois é nessa terra contraditória de exigências que o super herói enfraquece e o homem desaparece. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário