quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Como qualquer outra reserva de energia, bestand se coloca como potência, e não como essência. Talvez o dualismo sujeito versus objeto, de que tanto se ocupa os estudos da Comunicação, trata de pensar somente a potência, que na visão marxista estará sempre a serviço do capital. Nesse cenário, que coloca a tecnologia como a "mestre de obras" do capitalismo, aos consumidores estaria disponível apenas a manipulação de reservas de energia com fins de alienação, ou com o fim nela mesma, na própria manipulação do objeto pelo sujeito no ciclo infinito do consumo.

Não é difícil perceber essa manifestação coletiva no mundo. Quantos são os que operam a reserva de energia de maneira a expandi-la, ou mesmo para transformá-la em algo que empodere o sujeito, e não apenas remodele infinitamente o objeto? Não são por acaso os esforços da literacia midática, que apesar de ser tema / disciplina relativamente recente, já fora introduzida por Herbert Marshall McLuhan em apenas um aforismo: Mind your media, man! 

Mas talvez a questão mais urgente, já colocada em debate por este blog, seja o papel da arte em deslocar a orientação do desenvolvimento tecnológico de um processo de Gestell (enquadramento) para torná-la ferramenta genuinamente pós-moderna.

Em  "The Question Concerning Technology", de 1954, Martin Heidegger define Gestell como uma força vital, invisível, que impulsiona o ser humano a revelar o "real", a "verdade". Heidegger também se refere à arte (poiesis) como um momento de êxtase, quando algo deixa de ser aquilo que à primeira vista se experiencia. Para Heidegger, Gestell interrompe essa transformação quando a tecnologia, ao invés de trazer o sujeito para o "aqui e agora", se transforma em utilitarismo.

Essa implosão da potência tecnológica pode ser encontrada na estética, sendo a imagem a tradução mais fiel de seus propósitos. No jornalismo, a imagem é o enquadramento da realidade em pequenas capturas "fidedignas" ao terror ou ao prazer. No cinema, tal como ainda o experimentamos, a imagem é Gestell das possibilidades narrativas. Segundo Heidegger, a experiência estética é a morte da arte à medida que a estética canaliza a energia do sistema em que opera para um determinado fim, ou objetivo: aquele do manipulador.

Pair of Shoes (1886), de Vincent Van Gogh.




Portanto, fim ou enquadramento são opostos de transcendência. Heidegger esperou por uma obra de arte que seria capaz de inaugurar o futuro no "aqui e agora", desocultar entidades como entidades. Ainda segundo Heidegger, a "verdade" é a verdade do ser, é desvelamento, deixar o objeto se manifestar. Nosso encontro fenomenológico com a arte mostra-nos que o seu significado não é nem inteiramente localizado no objeto que está diante de nós nem é simplesmente projetada por nossa subjetividade

O significado da obra deve, antes, ser realizado em nosso próprio envolvimento com o trabalho, em uma negociação pela qual "desvendamos" o sentido do mundo. Para uma melhor compreensão deste enunciado, vale conferir os escritos de Heidegger sobre a pintura "Os sapatos", de Vincent Van Gogh. Para o download do arquivo, clique na imagem acima.

Voltando à questão de origem deste post, a arte é a única ferramenta capaz de desenquadrar o mundo, pois somente ela pode desvendá-lo constantentemente. O papel do artista é proporcionar insights. Segundo Heidegger, todos os grandes criadores devem ser capazes de discernir os contornos incipientes e inéditos de algo, ajudar a desenhá-lo para a luz do mundo, e assim criar ou renovar a herança ontológica da humanidade para o futuro. Como isso sugere, no cerne da compreensão de Heidegger sobre a arte está um encontro com um "nada" que simplesmente não é o nada, mas, ao contrário, designa possíveis significados ainda escondidos dentro da tradição.

Por outro lado, se ao artista cabe esse papel, ao homem "comum" cabem duas opções: ou se tornar artista ou ser meramente ordenador (tal como no idioma espanhol para a palavra "computador") de energia. Se Heidegger não viveu o suficiente para perceber o potencial da tecnlogia como uma facilitadora transcendental, o artista do nosso tempo deve constatar que a sua tarefa é maior do que a sugerida por Heidegger. Além de desvendar o mundo, deve desvendar ao mesmo tempo a pequenez e a grandiosidade do homem frente aos aparatos. Esse é o sublime tecnológico, que por sua vez é tema de uma outra conversa.

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