quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A Gestell e o artificialismo da transformática

É uma tarefa problemática pensar a tecnologia atual através da visão de Heidegger. Isso porque ele pensava em dois tipos tecnológicos, um pré-moderno (ou pré-industrial) e profundamente envolvido com a natureza - sendo parte dela, em certo sentido - e outro moderno e destacado da natureza. Nesse sentido ele vai chegar na noção de "Gestell", que, segundo José Carlos Vasconcelos e Sá, significa a essência da tecnologia moderna como algo autônomo em relação ao humano ("A crítica da técnica e da modernidade em Heidegger e McLuhan", p. 127). Desse cenário surge então a noção de 'bestand', que, ainda segundo Sá, é como Heidegger representa o resultado dessa "transcendência" da tecnologia em relação ao humano, qual seja, o de um mundo habitado por "objetos sem valor em si, excetuando o uso que se lhes possa dar, (...) objetos produzidos sem individualidade real - no fundo, objetos degradados do humano" (idem, 127).

Novamente pensando através da noção de rede, essa divisão que o filósofo faz entre "natureza" de um lado e "tecnologia" do outro perde a força. Em certo sentido, sendo o homem em grande medida ainda um animal, tudo o que ele faz acaba sendo parte, em maior ou menor medida, do que se chama normalmente de "natureza". Além disso, se pensarmos a noção de tecnologia de uma forma mais ampla, alicerçada pela noção de rede, ela está em tudo, desde a produção de uma fogueira (para a qual se usa a tecnologia das mãos etc) até os computadores. Em artigo recente, o escritor Affonso Romano de Santanna (em seu livro "Ler o mundo") afirmou que outro exemplo de tecnologia é a linguagem. E a partir dessa ótica teremos uma infinidade de outros exemplos.

Outra questão importante levantada pela pergunta é a da produção de imagens. O mundo atual beira a 'vertigem' por conta da produção incessante de novas imagens, para a qual a capacidade humana não estaria preparada. A dúvida que surge é: alguma vez o ser humano esteve pronto para receber a quantidade de imagens que o mundo produz? De fato, nas épocas pré-computador, a quantidade de informações que chegava a uma pessoa era menor. Mas era menor apenas por conta das formas tradicionais de controle. Isso não significa que não existisse potencialmente uma quantidade imensa de imagens. Nos parece que, de uma forma ou de outra, as pessoas hoje utilizam os seus filtros - até porque, novamente relembrando Funes, o conto de Borges, trata-se de fato de uma questão de limite, já que é impossível pensar em várias coisas ao mesmo tempo) -, que agem como as formas de controle mais antigas.

Sob esta perspectiva, não podemos escapar de considerar a visão de Heidegger algo fatalista - e, arriscaria dizer, outro algo "antropocêntrica" (ainda que ele não dispusesse da noção de rede, por exemplo, o que minimiza esse ponto). É claro que os jogos de poder não acabaram e isso significa que não se pode cair na posição oposta, de uma visão absolutamente otimista em relação ao que se chama de tecnologia. Nesse sentido inclusive cabe a colocação de Sá, quando afirma que "a análise de Heidegger procura (...) tornar visível o equívoco persistente na tradição filosófica ocidental em considerar a técnica algo neutro e passível de controle" (idem, 128). Mas não para concluir que ela seja um ente autônomo e que rebaixaria o homem a um papel secundário. Nos parece que o processo é mais heterogêneo e "mesclado", a tecnologia fazendo parte do que é humano da mesma forma que o contrário.

E aí temos a questão da arte. Nesse contexto, vale citar a transformática. Nela, a noção de “arte” surge sublinhada no radical ART, presente em termos como “artifício", "artificial", "artificialismo", "artista", "artefato" e, especialmente, "articulação”. Assim sendo, noções como “criação” e “arte” estão ligadas, aqui, à ideia de articulação, ou seja, de produção de novas 'transas', baseadas sempre na lógica do revirão, e portanto, na lógica da suspensão das oposições e na consideração e produção do maior número possível de possibilidades, em qualquer situação. Esse deslocamento, que funciona tendo como referência o revirão, caminha sempre no sentido da produção de novos artifícios, portanto de novas formas de arte, que permitam a flexibilização das duras oposições que invariavelmente ocorrem no nível sintomático do cotidiano e da produção cultural humana – como, por exemplo, certeza-incerteza, verdade-mentira, fato-ficção, arte-realidade etc. Nesse sentido, toda arte, para a transformática, é, no mesmo processo, um ato analítico. É quando a formação acessa o revirão e flexibiliza as diferenças a um nível de indiferença radical, o que significa que a atividade se orienta pelo contato não apenas com os focos, mas também com a extensa zona franjal que constitui a formação como rede.

Partindo desses pressupostos, a visão de Heidegger ganha ainda mais o contorno do fatalismo. O "enquadramento" passa a ser não o da tecnologia em relação ao ser humano, mas sim o das formações excessivamente recalcadas da sintomática cotidiana, ou seja, daquelas que tenham dificuldade de variar as suas "transas" - e, portanto, novas "articulações" -, em relação às possibilidades de flexibilização do artificialismo. Para a transformática, o "Gestell" estaria aí. E aquilo que se chama de tecnologia passa a ser apenas mais um pedaço dentro desse enredo - e não um protagonista que estaria orquestrando, de forma transcendente, uma "degradação do humano" (como diz Sá à p. 127).

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