quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Atenção e Há-tensão das formações contemporâneas

A riqueza do trabalho de Jonathan Crary reside no fato de que ele transita de forma cuidadosa pela ambivalência do tema que escolheu pra desenvolver, o tema dos mecanismos de atenção, notadamente no século XIX e na virada deste para o século XX. Ou seja, ainda que aponte para os aspectos disciplinadores e espetaculares da virada da modernidade (o que mostra sua ligação com as ideias de Foucault e Debord, respectivamente), ele não deixa de citar constantemente o outro lado, ou seja, as possibilidades contraindutivas presentes no fenômeno que ele designa como "atenção".

Vale colocar que, mesmo dentro desta perspectiva "bipolar", que nos interessa, o autor adota a 'subjetividade' como um referente frequente, o que parece ser inescapável diante da escolha da "atenção" como tema central de análise. Não é a nossa, que já que ele não escapa de seguidas vezes trabalhar com uma divisão entre "mundo exterior" e "experiência perceptiva interna" que não cabe, por exemplo, na noção de rede - assim como também não se encaixa com a transformática, que também pensa o que já se nomeou "sujeito" ou "subjetividade" como uma "rede de formações", que seriam aglomerados simbólicos cambiantes e em constante relação com outros aglomerados. Essa divergência, ainda que deva ser colocada, não apaga entretanto a importância de várias questões levantadas pelo autor.

Uma dessas questões ele coloca quando diz que "a lógica dinâmica do capital começou a enfraquecer de maneira drástica qualquer estrutura estável ou durável da percepção" (35). Ele sugere então, numa afirmação algo foucaultiana, que "essa lógica impôs ou procurou impor simultaneamente um regime disciplinar de atenção" (idem). Crary faz então um passeio pelo debate teórico a respeito da atenção e temas adjuntos, passando por um grupo de autores bem amplo, que vai desde Kant, Schpenhauer e Freud até Foucault, Debord e Hannah Arendt, para situar tanto as visões que pensavam a atenção como um mecanismo de defesa repressivo e disciplinar contra o "perigo" da livre associação (que remete a certos princípios freudianos, como o do superego e da neurose), quanto aquelas que, ao contrário, viam na atenção uma possibilidade daquilo que o autor chama de "novas condições de subjetividade" (47). Por isso ele cita "as relações inconstantes entre o poder institucional/discursivo, de um lado, e uma composição de forças que resistia de maneira inerente à estabilização e ao controle de outro" (idem). Em outras palavras, a atenção como 'fomento da passividade e do automatismo' de um lado, e como 'estratégia de resistência voluntária' de outro ("a atenção como expressão da vontade consciente do sujeito autônomo" (48)).

O texto tem o mérito de conter um apanhado histórico e crítico e, no nosso entendimento, chega em seu ápice quando pondera que a atenção traz em si as condições para sua própria desintegração - "o estado de atenção [é] na verdade inseparável do de distração, devaneio, dissociação e transe" (70). E isso nos traz à pergunta, ou seja, ao mundo contemporâneo.

Em nossa concepção, não há uma diferença estrutural que distingua a atenção no mundo moderno e a atenção no mundo contemporâneo. Na verdade, nos parece que se trata, fundamentalmente, do embate histórico entre o foco e a flexibilização da experiência. Na Idade Média, por exemplo, certamente esse embate se dava de forma sistemática no jogo das estratégias religiosas para angariar a 'atenção' dos fieis (no que um estudo mais detalhado sobre os rituais e praxes da liturgia pode ajudar bastante a desenhar). Mesmo com toda a força da imposição do poder católico, isso certamente não apagava a existência de "experiências flexíveis" no âmbito da vida particular de cada pessoa que lá vivia. A diferença maior da nossa época está, talvez, no fato de que a modernidade, ao contrário das épocas tradicionais, eleva a "experiência flexível" ao status de eixo, o que automaticamente empurra as tentativas de controle para o campo da sugestão e não mais da força "absolutista" (ainda que esta sobreviva como última instância, estritamente policial).

O texto de Crary nos trouxe a lembrança do conto de Borges, "Funes, o memorioso", a história de um homem que não consegue mais esquecer e acaba escravo dos detalhes. É um conto que está carregado da mesma ambivalência que impregna o artigo de Crary: o foco excessivo nos leva ao ápice da repetição mecânica. O "esquecimento" (que Borges traz como eixo e Crary cita quando fala de Nietzsche) acaba sendo uma parte inescapável de qualquer "foco", o que aparece na transformática quando esta trabalha com a noção de 'formações', formadas por pólos, focos e franjas. O campo das franjas, tudo aquilo que existe na rede mais ampla daquela formação, pode ser pensado como aquilo que reside no entorno de toda "atenção" (ou foco), ou seja, o que "esquecemos" voluntariamente para poder exercitar o enquadramento pontual de alguma coisa. Nesse sentido, o foco é um ponto de 'redução' que recalca o restante das possibilidades, para poder trabalhar temporariamente num núcleo de situação que, apesar do recalque, não ignora a existência das franjas (ao contrário, trabalha com elas como parte constitutiva do processo). O que em certo sentido mescla os dois pólos da atenção trazidos por Crary: associação e dissociação no mesmo embalo.

Por último, cabe citar a crítica que o autor faz à televisão e ao computador que, segundo ele, "apesar de convergirem para uma operação maquinal única, são processos antinômades que fixam e estriam. São métodos para controlar a atenção por meio de compartimentalização e sedentarização, tornando os corpos controláveis e úteis, ao mesmo tempo em que geram a ilusão de escolha e 'interatividade'" (101). Essa crítica diz respeito ao mundo contemporâneo e pode fechar esta resenha trazendo a questão chave: os mecanismos de atenção na sociedade contemporânea. Há o TDA (Transtorno de Déficit de Atenção) que o autor cita - e que, apesar de demonstrar uma dificuldade inegável do exercício do rigor ("atenção") por parte dos estudantes atuais, pode ser também um aspecto que ilustra de forma significativa a falência dos projetos educacionais institucionais que trazemos desde o iluminismo pra cá -, há também o fenômeno do marketing. O marketing parece ser parte fundamental da ambivalência descrita pelo autor em sua tese: por um lado, aponta para o reinado das mensagens curtas e que demandam um mínimo de cuidado reflexivo (o importante é seduzir, atrair a 'atenção' para o consumo rápido e sem maiores questionamentos); entretanto, por outro lado, a própria existência do marketing parece apontar para o fato de que estamos numa época na qual os mecanismos de controle e disciplina existem num formato razoavelmente flexível. Ora, se preciso criar uma estratégia de convencimento que atraia a atenção do consumidor, é porque essa atenção não existe garantida a priori - o que aponta para a existência de um jogo e não de um sistema de controle. Resta refletir até que ponto esse jogo não acaba resultando numa lógica que empobrece o diálogo dos focos com suas franjas - o que acaba em formações excessivamente recalcadas por excesso de foco. Sem entretanto cair no pólo oposto, de uma crítica da tecnologia como um instrumento que carregue esse empobrecimento como essência. Avaliar o tipo de atenção que está em jogo em cada situação é o mais importante, para não estancar em nenhum dos dois lados.

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